sábado, 12 de fevereiro de 2011

Obediência voluntária







Ouviu do marido que deveria ser submissa. Foi ao dicionário ver o significado de submissão: “Ato ou efeito de submeter. Obediência voluntária; sujeição: submissão perfeita. Humildade, humilhação, passividade, subserviência.” Sentiu um abalo sísmico no corpo. Só guardou uma palavra: voluntária. A partir dela desenvolveu seus argumentos. Não se voluntariava a fazer a vontade de outra pessoa contra seus próprios desejos e interesses. Não, não era outra pessoa, era seu marido, carne de sua carne, que pretendia o bônus de ser o condutor de sua vida. Discordou, questionou, vociferou: “por que eu?” Por que ele não entregava também as rédeas de sua vida a ela? Porque o matrimônio era um corpo e, logo, o marido é a cabeça, a parte pensante, a parte que decide. Era mandamento divino, desígnio de Deus. A ela cabia ser uma mulher virtuosa.

Foi ao dicionário ver o significado de virtuosa. “Aquela que tem virtudes”. E virtude significa “disposição firme e constante para a prática do bem, força moral e valor.” Gostou. Enquadrava-se perfeitamente. O marido disse que não, que ela era rebelde e transgressora, além de distorcer as escrituras sagradas.

Percebeu que entendiam as palavras de maneiras distintas. Era inútil discutir. A voz grave do marido selava a decisão, sempre. Quis debandar, desaparecer, mas teve medo. Sobretudo, medo de Deus. A desobediência era fruto do maligno. Melhor obedecer e ser dócil como insistia o marido. Tentou. Vieram os filhos. Dois. Adoçavam seus dias para que pudesse suportar o amargo das noites. Teve a alma rasgada, as vísceras perfuradas e a autoestima dissolvida em lágrimas de solidão. As pessoas não a compreendiam. Outras mulheres invejavam sua condição, dizia o marido nos contínuos sermões que proferia na intimidade do quarto. No calor desses discursos, desejava ser surda. Acionava um tampão virtual para bloquear as palavras. Mas as palavras possuíam um fio cortante e penetravam os tímpanos. Depois ficavam dando voltas em espirais, perturbando o espírito, desestabilizando a alma. A circunvolução dos significados era o mais puro estado de horror, com o agravante de ser para sempre, não enxergava saídas. Sentia pena de si. Sentia na pele a rejeição por parte da humanidade. Depressão?

Os filhos cresciam, a ira crescia e crescia um sentimento de mágoa contra Deus. Isso porque Deus estava do lado do marido. Tentou ajuda espiritual, veio a sentença: blasfêmia. Deus amava os limpos de coração. A ela lhe faltavam fé, sabedoria e empenho. A mulher sábia edifica o lar e ela o estava derribando. Para Deus nada era impossível, de forma que o problema estava nela e com ela. Faltava crer, faltava amor, faltava entrega, faltava, faltava, faltava.........

Voltou impotente, frustrada, confusa. Era Deus machista? Torturador? A pergunta ficou rodando como um redemoinho em seu cérebro. Era certo que não poderia culpar Deus por suas próprias escolhas. Mas já não sabia o que pensar. Sentiu-se suja, corrompida pelo pecado do ódio e da blasfêmia. Devia perdoar Deus e o marido. Devia amá-los, mesmo estando vazia de amor. Nessas horas, corria para debaixo do chuveiro com roupa e tudo. Tentava lavar a alma, o coração, os pensamentos se possível. Precisava apagar da mente o poema com sentença de morte pregado na parede principal do cérebro. Começaria apagando a primeira frase: “A ‘vida’ é um lugar onde não se pode viver.” Sempre colocava a vida e a morte entre aspas. Estava perturbada, nisso o marido tinha razão. Também devia ter razão quando pronunciou com a boca cheia que ela era frígida. Sexo era a página escura com que abria suas noites. Sexo doía, afetava o estômago e as entranhas. Era uma violência silenciosa que ela conhecia de memória. Mas às vezes não era apenas silenciosa.

Amanheceu com os olhos roxos e inchados. Tinha dúvidas sobre o que fazer, perderia a razão se falasse, perderia a vida se calasse. Sentiu-se a poucos passos de uma eternidade desconhecida. Recorreu à autoridade civil. Falou o que estava proibido mencionar. Falou da agonia de viver mascarada por outra realidade, do medo de respirar, o perigo, os riscos... Porém, em seu ser mais profundo sentia que a situação era incomunicável. Ninguém poderia compreender a atmosfera em que estava metida. Chamariam o marido e o alertaria de seus direitos e deveres dentro de uma união. Seria interrogado, talvez ameaçado... Quanto a ela, bem, seria encaminhada a uma psicóloga cuja lista de espera era de dois meses. Ainda assim, aceitou a benevolência.

Naquela noite trancou-se no quarto para tentar fugir da hora assombrosa, a intuição dizia que necessitava ser valente. Não conseguiu ser tanto quanto o necessário, a porta foi aberta a golpes estridentes. Sentiu saltar a pulsação da veia do pescoço, sentiu o pulso, o coração e depois um descanso profundo.

Acordou no hospital entre paredes brancas e forte cheiro de álcool. Lesão craniana. O marido segurava sua mão enquanto o médico lhe perguntava detalhes sobre o terrível acidente que sofreu. Um vaso de flores havia caído sobre sua cabeça. Não, não se lembrava de nada, assegurou. Tentou mover o pescoço imobilizado e lançou um grito de dor. As lágrimas saltaram por uma comporta e lavaram seu rosto cansado. Iria morrer? Não, mas poderia ter morrido, censurou o médico ao referir-se à sua falta de cuidado. Por conta disso, um longo período de observação e uma semana mais de hospital.

A última frase do médico soou como uma felicidade-luz. Um profundo prazer inundou seu interior. Foram dias brancos e felizes. Dias em que não ouviu a voz de seu feitor. Dias em que pensou só, sem nenhum condicionamento autoritário. Os pensamentos ultrapassavam os limites de seu cérebro. Descobriu que dentro de si havia uma voz potente e que podia sentir-se gente no mundo, o mundo que era sempre dos outros. Imaginou se já não era o momento de tomar as rédeas de seu destino. Saiu do hospital sentindo o hálito de um novo dia, um dia que seria só seu. Os filhos, já com dezoito anos, celebraram o que poderia ser a paz. Ela examinou a casa. As paredes azuis da casa, a marca na escada onde havia um vaso com flores... À noitinha observou uma lua jovencíssima no céu. A lua que também recomeçava uma nova fase. Nenhuma palavra desesperada, nenhum remordimento iria tirar o seu prazer. O prazer de ser ela mesma, o prazer de se amar.

Pela manhã o médico foi chamado, mas a mulher de semblante doce estava morta. Traumatismo cranioencefálico atestou o doutor. O marido foi ao dicionário buscar o significado da palavra, o conceito, a etmologia... elaborou uma definição ponpoza e explicava a cada um de seus amigos com resignada consternação cristã.

Lucilene

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